Resenha da HQ O Cabra

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O Cabra é uma HQ escrita e desenhada por Flávio Luiz, e com cores de Artur Fujita. Ela conta a história de Severino, vulgo O Cabra, um cangaceiro fora da lei cujo bando foi dizimado no dia do seu próprio  casamento. Nessa trajetória de aventura e traição, Severino enfrenta aqueles que o traíram e terá que se deparar com a verdade que por tanto tempo não conseguiu enxergar.

A HQ se passa em um futuro incerto e pós-apocalíptico. A Terra é um planeta quase desértico onde a água potável tornou-se ainda mais preciosa e é privilégio de poucos. Nesse ambiente inóspito, a genética evoluiu para clonagens e hibridizações entre as espécies, tornando comum a presença de clones e seres antropomórficos. Trata-se de uma aventura nordestina futurista, misturando ficção científica, cordel, mangá e faroeste, e que ainda traz violência e uma surpreendente história de amor.

Com essa proposta O Cabra dá um passo à frente no quadrinho brasileiro ao incorporar elementos do quadrinho mundial de aventura, com informações e referências de formas populares de nossa cultura. Essa mistura de ficção científica e realidade nacional inovou e foi bem conduzida, não é a toa que venceu o Troféu HQ Mix de 2011 na categoria Publicação Independente de Autor.

A arte também conquista  pelas variações de ângulos e pelo estilo próximo ao cartum. As expressões criadas para o vocabulário dos personagens dão um humor e um sabor peculiar a esse quadrinho, que contrastam com as cenas mais cruas e sanguinárias, afinal o Cabra gosta de matar suas vítimas arrancando suas cabeças com uma peixeira.

Mas o grande destaque da publicação vai mesmo para o seu formato gigante (25 x 38 cm). Ele impressiona e faz um resgate das extintas páginas dominicais dos jornais, onde os quadrinhos se desenvolveram e tornaram-se populares.

Assim, o interessante é que mesmo fazendo uma obra com características universais próprias aos quadrinhos de aventura e ficção científica(como o ambiente, a presença da tecnologia e de assuntos como clonagem e a distopia) o autor inova pelo sincretismo desses elementos com temáticas nacionais. São inseridos assuntos regionais como a seca e o ainda presente coronelismo e a cumplicidade da religião perante problemas sociais. E tudo muito bem escrito, desenhado, pintado e editado.

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O Cabra

Avaliação enquadradinhos: bom

Autor: Flávio Luiz

Cores: Artur Fujita

Editora: Papel A2

56 páginas

Preço: R$ 30,00 em livrarias e R$25,00 diretamente com o autor e em eventos

Resenha da HQ Avenida Paulista

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Avenida Paulista, de Luiz Gê, é provavelmente uma das histórias menos lidas e mais aclamadas da história dos quadrinhos brasileiros. Publicada originalmente em 1991 com o nome Fragmentos Completos, HQ foi uma encomenda para a Revista Goodyear, de circulação restrita a clientes, revendedores, distribuidores e outros públicos ligados à empresa. A edição lançada pela Quadrinhos na Cia. em 2011 é, portanto, a primeira vez em que a história chega ao público em geral, agora com o nome Avenida Paulista e revisões do autor.

Mesclando pesquisa histórica e iconográfica e o cenário de delírio e fantasia característico dos trabalhos de Luiz Gê, o álbum narra cem anos de transformações ocorridas na avenida que simboliza como nenhum outro lugar o desenvolvimento acelerado e caótico de São Paulo. A narrativa se inicia com a idealização de um boulevard em estilo europeu pelo engenheiro Joaquim Eugênio de Lima, passando pela construção dos grandes casarões, o início da verticalização da cidade e os ambiciosos projetos urbanísticos que nunca saíram do papel até chegar ao cenário atual de engarrafamentos e grandes arranha-céus envidraçados. Desse modo Gê mostra a evolução da avenida desde uma travessia de bois, passando pela transformação em point da aristocracia paulistana até o atual estágio de centro nervoso do capitalismo financeiro.

Desperta atenção como essa trajetória é contada com um misto de ficção e realidade, de cenários e situações surrealistas. Um dos recursos mais bem empregados para ilustrar a velocidade das transformações se dá no descolamento de alguns personagens no tempo, como se a avenida tivesse vida própria e pudesse mudar toda sua paisagem num atravessar de ruas. Textos intercalados aos quadrinhos vão completando o entendimento do leitor com o pano de fundo histórico e social.

Também é interessante notar como a Av. Paulista nasce a partir do claro objetivo de diferenciação de uma elite recém-formada que ansiava dar sinais claros de seu poderio. Nada mais lógico do que escolher a região mais alta da cidade, isolada das fábricas e dos bairros pobres que sofriam com as enchentes. Tratava-se de um sonho bucólico, quase um oásis encravado na região central de uma cidade que crescia assustadoramente. Isso mostra como o poder financeiro foi responsável direto pela construção da cidade, inclusive ditando que usos as regiões teriam e quais seus significados simbólicos.

E a Paulista é a maior expressão disso, pois representa não apenas a força do capital, mas também suas diferentes fases. Daí a demolição sistemática de regiões inteiras, como foi o caso das mansões e boulevards, que deram lugar a empresas e centros comerciais. Isso nos faz pensar que a história da cidade sempre precisa ser recontada, de acordo com os usos que fazem dela. O capital se modifica rapidamente e isso se reflete na cidade, que deve se adaptar na mesma velocidade. E, assim, a cidade está sempre se refazendo.

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Avenida Paulista

Avaliação enquadradinhos: bom

Autor: Luiz Gê

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 88

Preço: R$ 39,00

Resenha da HQ Fagin, O Judeu

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No penúltimo livro de Will Eisner, a história de Oliver Twist, romance de Charles Dickens, é recontada sob a perspectiva do judeu Fagin. Trata-se de uma obra polêmica e engajada, na qual um dos maiores quadrinistas de todos os tempos confronta o anti-semitismo em um misto de crítica social e literária.

No livro de Dickens, Fagin é retratado a partir do estereótipo do judeu mesquinho e avarento, que ensina crianças inglesas abandonadas nas ruas a viverem de pequenos furtos. Na visão de Eisner, este tipo de obra contribui muito para um tratamento depreciativo dos judeus, e teria reforçado sua imagem negativa e preconceituosa  na cultura moderna. Embora não seja considerada uma das melhores obras de Eisner, esta pessoalmente é uma das minhas HQs favoritas, em virtude de sua proposta criativa e militante. O interessante é que a história não é uma mera adaptação de Oliver Twist, mas sim um diálogo com esta obra, propondo de fato um novo ponto de vista a respeito dela.

Foi essa a percepção que guiou Will Eisner em Fagin, o Judeu. A obra é um acerto de contas não apenas com Fagin, mas com todos os personagens que representaram a visão anti-semitista na literatura. Na história, Eisner dá foco às condições miseráveis dos judeus imigrantes na Inglaterra do século XIX. Na época, os judeus  asquenazitas vindos da Europa Centro Oriental tinham de enfrentar as ruas de Londres às voltas com a miséria e o preconceito. Desse modo, esses indivíduos meramente subsistiam diante de uma sociedade que não os aceitava.

Fagin não era uma exceção. Sua vida é trágica e cruel, repleta de injustiças e sofrimento. Para sobreviver ele teve de transitar em muitos momentos pela criminalidade. É fácil, durante a leitura, julgar um ato de Fagin e, logo em seguida, nos questionarmos se, diante do contexto, ele tinha alguma outra opção.

A história começa na infância de Fagin, quando ele narra, para o próprio Dickens, sua trajetória de luta pela sobrevivência nos subúrbios de Londres. Com o assassinato de seu pai, teve que roubar alimentos e remédios para sustentar a mãe. Pouco depois, porém, ela morre e um rabino lhe arranja um emprego na casa de um rico sefardita (judeu de ascendência ibérica),  o Sr. Eleazar Salomão. Por um momento, sua vida parece promissora, mas um deslize – um caso amoroso com a filha de um dos sócios do Sr. Salomão – e alguns mal entendidos lhe jogam novamente nas ruas.

De volta ao crime, acaba sendo preso e condenado ao degredo nas colônias, fadado a um destino de frustração, humilhação e a precariedade. De volta a Inglaterra associa-se a um criminoso inglês chamado Sikes, continuando na marginalidade.

Fagin, o judeu  é um verdadeiro panorama das agruras e sucessos dos imigrantes judeus na Inglaterra do século XIX. Além de seu inigualável talento para narrar histórias em quadrinhos, Eisner expõe seu ponto de vista sobre a questão, no prefácio e no posfácio do livro. O livro ainda traz reproduções de charges de famosos ilustradores do século XIX, selecionadas pelo autor, o que o deixa ainda mais rico.

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Fagin, O judeu

Avaliação enquadradinhos: ótimo

Autor: Will Eisner

Tradutor: André Conti

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 120

Preço: R$ 38,00

Resenha da HQ O que aconteceu ao homem mais rápido do mundo?

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Com uma capa em forma de jornal e com essa pergunta como manchete e título, a obra independente de Dave West, com arte de Marleen Lowe ganha pela simplicidade da história e a mensagem que ela passa. Ao conhecermos o protagonista, um jovem comum, porém com um poder e bondade capaz de fazer um verdadeiro sacrifício pelo próximo, podemos lembrar o verdadeiro sentido do que é ser um super-herói.

A HQ conta a história de Bobby Doyle, um jovem com um dom muito especial. Ele consegue congelar o tempo e todo o resto ao seu redor, o que, consequentemente, o torna o homem mais rápido do mundo. Isso o possibilitou certa vez salvar dezenas de pessoas que morreriam em um acidente de trem, transportando uma a uma para um local seguro sem que ninguém percebesse.

Mas nada é tão simples: embora o tempo não se passe para o resto do mundo, para Bobby ele corre normalmente, cobrando o seu preço com problemas como fome, sede, solidão e envelhecimento quando precisa utiliza-lo por um período prolongado. Trata-se de um poder capaz de realizar grandes feitos, mas que traz difíceis consequências.

E quando Bobby tem de enfrentar tudo isso para salvar pessoas em risco, ele não pensa duas vezes. A história começa quando um terrorista coloca uma bomba em um prédio de Londres, e a polícia falha em impedir o atentado, que se torna iminente. O perigo só é então revelado à população 1 hora antes da bomba explodir, tempo insuficiente para a evacuação de toda a área que seria devastada.  Quando tem ciência desse evento, Bobby congela o tempo e estuda como salvar todas as vidas ameaçadas.

A história realmente é sobre um super herói, mas não um o qual estamos acostumados a ver nos quadrinhos das grandes editoras. Ele traz a perspectiva real e sentimental dos sacrifícios que uma pessoa faz para realizar o que é certo. Ficamos próximos e nos colocamos no lugar de um Bobby que tem de enfrentar física e psicologicamente o peso de se abdicar em benefício de tantas pessoas.

E não há nenhuma saída milagrosa para esse impasse: o personagem é um homem comum e que vive no mundo real. Ele não tem ideia de como desativar a bomba, como nem eu ou você teríamos. Ele tem inteligência e capacidades medianas, não tem força para aguentar carregar o peso das vítimas… se sente solitário, como qualquer um se sentiria preso em uma temporalidade paralela à real.

Um detalhe é que quando o tempo é congelado os grandes objetos não funcionam, o que torna impossível facilitar o transporte com veículos. Bobby percebe que, se quiser salvar as milhares de pessoas da cidade, ele terá que carregar uma a uma e as levá-las para um local seguro, a vários quilômetros do prédio que abriga a bomba. Mesmo tendo consciência de que esse trabalho poderia custar todo seu tempo de vida, Bobby não se abala, e aceita a missão a um custo talvez muito alto.

A HQ também vale a pena pela edição caprichada da Gal Editora. Ela conta com um prelúdio exclusivo, chamado “O Minuto Mais Longo”, uma história que mostra Doyle em sua infância, já aprendendo a lidar com seu poder, e as vantagens e dificuldades que ele traz. A revista também traz diversos textos explicativos e extras, o que enriquece ainda mais a edição. Muito interessante a descrição de como foram os bastidores da publicação aqui no Brasil, desde o primeiro contato com o autor da obra até a finalização e a constatação da amizade selada entre ele e o editor da revista.

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O que aconteceu ao homem mais rápido do mundo?

Avaliação enquadradinhos: bom

Roteiro: Dave West

Arte: Marleen Lowe

Editora: Gal Editora

Tradução:Eliane Gallucci e Maurício Muniz

Preço: R$ 22,00

64 páginas preto e branco

 

Resenha da HQ Habibi

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Habibi, mais uma obra prima de Craig Thompson , pode ser considerada o trabalho mais audacioso deste autor. Esta história maravilhosa e cativante nos traz uma fábula sobre o Oriente rica e sensível, desmontada e remontada constantemente em um relicário de outras histórias. Entre pesquisas sobre o mundo árabe, Thompson levou nada menos do que sete anos para completar o livro, o que é mais do que justificado pelo enredo e arte expostos em suas belíssimas 672 páginas.

Esta premiada graphic novel conta a saga de dois escravos fugitivos, unidos e separados pelo destino, vivendo no limite que separa a tradição da descoberta.  Dodola, uma garota independente e perspicaz que é vendida como escrava aos 9 anos, torna-se com tão pouca idade responsável por um bebê que encontra no mercado de pessoas, o então pequeno Zam. Juntos eles passam a viver no deserto em um navio naufragado na areia.  Em meio a sentimentos cada vez mais conflitantes, eles passam o tempo contando histórias. Assim, somos apresentados também à origem do islamismo e de suas tradições, conforme as narrativas se combinam numa trama de aventura, romance, filosofia e tragédia.

A impossibilidade de permanecerem escondidos os força a sair de seu antro seguro, e a partir daí acompanhamos os laços de amor e carinho entre ambos serem testados pelas suas vidas, que preenche seus caminhos com rumos diferentes, doídos e muito inesperados. É a cumplicidade entre ambos  que os move a construir suas trajetórias na luta pela sobrevivência.

A jornada é ambientada em um país fictício do Oriente Médio, onde são misturados elementos distópicos e fantásticos inspirados em  histórias árabes, como o Corão e as Mil e Uma Noites. Deles é que Thompson colheu o  estilo do livro, recheado da caligrafia árabe e narrativas sagradas, que  são mescladas com maestria em um cenário fantasioso, repleto de lendas e histórias, que dão o tom de seu conteúdo histórico, mítico, religioso, filosófico e, sobretudo, humano.

Uma das marcas em suas obras são as belíssimas metáforas casando perfeitamente o seu texto com os desenhos. E aqui a influência da cultura arábica se mescla sem igual, pois os intrincados mosaicos, caligrafia oriental e os belíssimos textos fluem em uma cadência de páginas. Isso é feito sempre com uma relação bem comedida entre o racional e o intangível. Um exemplo é que  Thompson descreve, no decorrer da trama, parte da história simbólica das letras e palavras árabes entrelaçando-as de maneira bela e criativa com o próprio enredo.

De certa forma, a obra é uma reação à xenofobia americana, que se agravou pós atentado 11 de setembro, na tentativa de mostrar ao Ocidente um mundo islâmico que difere dos esteriótipos. A obra é acima de tudo sobre o amor e suas diversas formas de manifestação, sobre os sacrifícios que fazemos por ele, em contrapartida com o que existe de mais podre e cruel nos próprios seres humanos.

Ao mesmo tempo, temas delicados também não são evitados. A culpa e vergonha relativa aos próprios instintos e fantasias, e como esses sentimentos podem levar à dor, mutilação e envelhecimento. Como o sexo e a gravidez afetam não apenas como as pessoas se sentem, mas quem elas são. Temas pesados como estupro, violência e escravidão também são abordados sem comedimento.

Estas são questões que sempre estiveram presentes e que afetam toda a humanidade. Crítica social, questionamentos ecológicos, paralelos entre religião e amor: tudo encontra seu lugar nesta narrativa tão épica quanto particular e  que merece ser lida e relida.

 

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Habibi  
Avaliação enquadradinhos: ótimo
Autor:  Craig Thompson
672 páginas
Tradução: Érico Assis
Editora: Quadrinhos na Cia.
Preço: R$ 45,00

Resenha da HQ Daytripper

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Daytripper é uma graphic novel que fala sobre a vida e a morte a partir de eventos importantes que ocorrem entre as duas. Trata-se de uma história tocante que nos leva a refletir sobre esses pequenos eventos, as realizações nas nossas vidas e o que deixamos para trás quando o inevitável ocorre. Mais uma vez os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá mostram seu potencial para contar histórias, nesta HQ  ganhadora de prêmios importantes, como o Eisner e o Jabuti.

A HQ conta a história de Brás de Oliva Domingos, milagroso filho de um mundialmente famoso escritor brasileiro que sonha em trilhar o mesmo caminho do pai. Em nosso primeiro contato com o protagonista, então com 32 anos, vemos um homem frustrado, vivendo à sombra do pai e preso em um trabalho que não o estimula nem o realiza. Ele é apenas um jornalista responsável pela coluna de obituários de um jornal da cidade de São Paulo, que escreve diariamente sobre a morte de outros, sem nunca começar a sua própria vida.

A partir daí, cada um dos dez capítulos mostra um período da vida de Brás de modo não linear: ora o vemos com 21 anos, encontrando aquela que parece ser a mulher da sua vida numa aventura cheia de misticismo passada na Bahia; ou com 41, vivendo a emoção do nascimento do primeiro filho ao mesmo tempo que tem de enfrentar a perda do pai; se emocionando com a sensação arrebatadora do primeiro beijo aos 11 anos; ou aos 38, quando busca incessantemente seu amigo Jorge, desaparecido há anos; e vivendo o sucesso como escritor aos 47 anos em uma turnê de divulgação pelo país.

Nesse movimento de idas e voltas, as vidas que ele teve/poderia ter/terá vão se revelando diante de nossos olhos. Através desses pequenos vislumbres, nós montamos aos poucos o quebra-cabeça da existência de Brás: vamos conhecendo-o melhor por meio das suas amizades, namoros, sonhos, casamento e do seu relacionamento com seu pai. Os capítulos sempre terminam com a inevitável morte do personagem, mas nos dizem muito sobre os pequenos instantes pelos quais sua vida se constitui.

Os desenhos magistrais da dupla Bá & Moon ganham uma nova dimensão nessa história. Ela  é contada com um lirismo tênue, interpolada por cenas amargas e cruas, que a fazem oscilar delicadamente entre o real e o mágico, sem que fique claro, jamais, em qual dos dois a trama verdadeiramente se passa.

Apesar de ter o nome da música dos Beatles e de ter saído primeiro no exterior e só depois traduzida para o português, Daytripper se passa no Brasil, seus personagens são brasileiros e o nome do protagonista é uma clara referência a um dos mais clássicos personagens de Machado de Assis. A adaptação traz um Brás Cubas da vida urbana e pós-moderna, mas que também tem de lidar com as mesmas dúvidas e incertezas inescapáveis à existência humana já trabalhadas na obra de  Machado de Assis. As mortes de Brás de Oliva Domingos nos fazem aprender mais sobre a vida e o quão efêmera ela pode ser.

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 Daytripper

Avaliação enquadradinhos: bom

Autores: Fábio Moon e Gabriel Bá (roteiro e arte)

Editora: Vertigo

Preço: R$ 45,00 (capa mole) e R$ 55,00 (capa dura)

250 páginas

Resenha da HQ Três dedos – Um escândalo animado

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Três Dedos – Um Escândalo Animado é uma graphic novel escrita e ilustrada por Rich Koslowski. A paródia a personagens famosos dos desenhos animados e ao aparente ilimitado império dos estúdios Disney e Warner Bros é trabalhado de maneira envolvente, cômica mas não menos ácida, nesta HQ vencedora do prêmio Ignatz Award de 2003.

A obra mostra a trajetória do cinema de animação em um mundo onde os humanos dividem espaço com os animados, seres antropomórficos considerados cidadãos de segunda categoria, que vivem em guetos e são desprezados pela sociedade. Nesse contexto o jovem cineasta Dizzy Walters descobre o talentoso Rickey Rat, um ator animado que, inusitadamente,  se torna uma grande estrela.

A parceria entre Ricky e Dizzy conquista Hollywood e se mantém hegemônica no cinema de animação, até que rumores sobre um escândalo terrível ameaça seu império. Em entrevistas exclusivas com figuras importantes do universo animado,   tais como o coelho Pernalouca, o leitão Engasguinho, o passarinho Liu-Liu, Leon Rey e o Pato Nildo,  o leitor é conduzido a desvendar o mistério que envolve o monopólio de Rickey nos cinemas, e de que maneira isso determinaria o destino de muitos outros personagens animados.

O roteiro é muito bem estruturado, revelando seus segredos de forma cadenciada. A narrativa se desmembra em forma de uma reportagem – documentário, o que agiliza a leitura e envolve o leitor. É por meio de fotos e depoimentos que procura-se compreender a possível ligação entre as figuras centrais da indústria cinematográfica e  a predominância de personagens com três dedos nas animações, e ainda se isso teria relação com a especulação de um determinado “ritual” ao qual todos os atores animados aspirantes deveriam se submeter.

A paródia dos personagens é muito bem feita, e por isso merece ser destacada. Os diálogos são pontuados por gírias e sotaques, além de balões e letreiramentos característicos. Não faltam referências e brincadeiras com os personagens clássicos de desenhos animados da Disney e da Warner, que se cruzam com  figuras históricas tais como  Kennedy, Martin Luther King Jr. e Marilyn Monroe.

Um misto de conspiração política e  jornalismo sensacionalista dá a sensação de presenciarmos uma história que certamente não está gibi, nem nos cinemas, nem no mundo real, mas, ao mesmo tempo, está. Humor negro e crítica social estão inscritas na injustiça, mutilação e ruína de tantas vidas que passaram pela indústria do entreterimento. Certamente você nunca mais verá  personagens de desenhos da mesma forma.

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Três dedos: Um escândalo animado
Roteiro e Arte: Rich Kowslowski

Tradução: Eliane Gallucci e Maurício Muniz

Formato: 21 x 26 cm

144 páginas em preto e branco

Gal Editora

Preço: R$ 39,90

 

Resenha da HQ KM Blues

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KM Blues é uma HQ independente, lançada pelo selo HQemFoco, e fez parte do ProAC 2011 – Programa de Ação Cultural do estado de São Paulo de histórias em quadrinhos. A graphic novel conta a História de Flávio, um homem de meia idade recém divorciado que passa por uma crise existencial e cai na estrada buscando reconstruir seu passado. À procura de respostas que possam ajudá-lo em um novo momento de sua vida, ele visita vários lugares importantes de sua trajetória, reencontrando pessoas e revivendo sentimentos.

Em seu percurso, ele encontra de forma inusitada o célebre músico carioca Cartola, sambista falecido que traz um toque especial a este enredo de Road Movie. A trilha sonora da trama, que mistura blues e samba, intermeada por conversas do protagonista com Cartola, dão a tônica da narrativa. Daniel Esteves conseguiu  produzir uma aventura realista e charmosa, com problemas que perpassam a vida de qualquer indivíduo, mas que são trabalhados com um toque de fantasia. Ficção e realidade se misturam com maestria nesta história que puxa o leitor para dentro das páginas, e que promete um final surpreendente.

Trata-se de uma visão poética de vivências que, muitas vezes, ignoramos no nosso cotidiano. A trama em que Flávio se envolve remonta a situações  comuns em nossas vidas, como encontros e desencontros,  oportunidades deixadas para trás, escolhas certas e erradas, enquanto que a figura enigmática de seu companheiro de viagem traz sabedorias de vida e a esperança de um recomeço.

Vale destacar também a incrível arte de Wanderson de Souza, que traz um traço simples, bonito e perfeito, e as cores do Wagner de Souza, tão realistas que parecem até pinceladas no papel. De modo geral, a HQ possui muita qualidade. Não é à toa que ganhou o prêmio HQmix 2013 de Melhor Publicação Independente Edição Única.

A busca por reencontrar o significado para a própria vida, passando pelo enfrentamento com diferentes “pontas soltas” do passado, a família, lugares, amigos e o grande amor. De que maneira nossas escolhas e vivências nos tornam quem somos? É possível mudar? KM Blues é uma história de estrada, mas que se atem mais às curvas do que ao próprio  caminho.

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KM Blues
Roteiro: Daniel Esteves
Desenho: Wanderson de Souza
Cor: Wagner de Souza
Cor Base: William Gene
16 x 25 cm
104 páginas
R$ 25,00

Resenha da HQ Bordados

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Bordados é a terceira obra de Marjane Satrapi, lançada em 2010 pela Companhia das Letras. Mais uma vez a autora iraniana surpreende com uma narrativa dinâmica e gostosa, marcada pelo seu peculiar humor ácido e feminismo mordaz

O “bordar” iraniano seria equivalente ao nosso ao nosso “tricotar”, ou fofocar, além de possuir outra acepção importantíssima para as mulheres iranianas. A expressão bordado designa também a cirurgia de reconstituição do hímen, uma decisão pragmática para aquelas que não abrem mão de ter vida sexual antes do casamento mas que são coibidas a corresponder às expectativas moralistas do país.

Assim como em outros livros, Marjane traz histórias das mulheres iranianas de sua família e lembranças de sua  infância. A narrativa se passa nos momentos após os almoços de família na casa da avó de Marjane Satrapi, em Teerã. Eles terminavam sempre da mesma maneira:  enquanto os homens iam fazer a sesta, as mulheres lavavam a louça e se reuniam para tomar chá. Era um momento pelo qual todas esperavam avidamente, já que, longe dos homens, podiam compartilhar seus sentimentos, ambições e frustrações.

Marjane, a mãe, a avó e suas amigas começavam então a contar suas desventuras com os homens, o amor e sua cultura opressiva ao sexo feminino. Entre uma xícara e outra, cada mulher começava a desfiar suas experiências e opiniões pessoais, além de fofocar sobre a vida alheia. É interessante notar que nesse grupo cada mulher tem uma relação distinta com a moral e vivências amorosas bastante variadas, mas que no entanto sempre estão às voltas com o machismo e a tradição.

O traço simples e os textos em letra corrida acentuam a intimidade que a a narrativa promove. A sensação é de se estar participando do chá ao lado dessas mulheres. Constantemente me coloquei no lugar de cada uma delas em suas histórias, e até de de Marjane, que era então apenas uma criança. Entre casamentos azarados, virgindades roubadas, adultérios, frustrações, golpes e autoenganos narrados com bastante ironia, tem-se um misto de riso e tristeza.

Num episódio narrado pela avó, uma mulher entra em pânico antes do casamento porque perdeu a virgindade com o seu verdadeiro amor e tem medo de que o futuro marido descubra o fato justo na noite de núpcias. A avó sugere então que ela leve uma lâmina de barbear para a cama, grite muito durante o sexo e faça um pequeno corte em si mesma para simular o hímen rompido. A mulher aceita as sugestões, mas, na hora H, acaba cortando o testículo do marido. Todas caem na gargalhada porque o sujeito preferiu ficar quieto e casado do que correr o risco de virar piada dos amigos.

Com Bordados, desconstruímos uma série de visões comuns a respeito do Irã, principalmente sobre as mulheres. Ao contrário do que se imagina, muitas iranianas falam abertamente sobre sexo e discutem as tradições, procurando meios de serem livres. Seja por meio de estratégias, traições, cirurgias ou fugas, essas mulheres gritam suas opiniões, mesmo que secretamente e com muita frustração e sofrimento.

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Bordados

Autora: Marjane Satrapi

Editora: Companhia das Letras

136 páginas

R$ 39,00

 

 

Resenha da HQ O Boxeador

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O Boxeador conta a história real do pugilista polonês Hertzko Haft, que sobreviveu aos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. Esta Graphic Novel premiada no Festival de Lyon é baseada na biografia escrita pelo filho de Hertzko, Alan Haft, intitulada Um Dia Eu Contarei Tudo: Uma História de Sobrevivência . A adaptação de Reinhard Kleist para os quadrinhos traz 200 páginas de tirar o fôlego, com a história real de um homem que se endureceu para não cair. 

O cenário  é a Polônia no final dos anos 1930, em plena Segunda Guerra Mundial. Para sobreviver, a família do jovem judeu Hertzko Haft contrabandeava através da fronteira que dividia o país em dois, devido à ocupação alemã. Acidentalmente preso pela SS, Hertzo foi confinado nos campos de concentração nazistas.Ele então se vê obrigado a criar estratégias de sobrevivência para conseguir lidar com os horrores diários promovidos pelo autoritarismo dos nazistas alemães e o sofrimento dos colegas judeus. Conquistando a simpatia de alguns oficiais, logo extravasou toda a sua raiva e frustração nos ringues improvisados dos campos de concentração, construídos para a diversão dos nazistas. Cercado de violência, desumanidade e morte, não lhe restava outra escolha senão vencer.

É interessante observar como o traço de Kleist vai fica mais sujo e grosseiro a cada dia que se passa na história. As expressões faciais e emoções dos personagens vão sendo dissolvidas conforme a luta pela sobrevivência exige das suas capacidades individuais. A realidade de Auscwitz, a fome, as lutas  e mortes exigem de Hertzko que ele endureça sua personalidade. A frieza e calculismo  são mobilizadas também por militares, que muitas vezes não são afeitos à ideologista nazista e também tem de negociar e estabelecer acordos  para sobreviver, nem que este processo envolva traição e corrupção.  De algum modo a Graphic Novel mostra os dois lados do regime nazista, o que dá ainda mais realismo à narrativa.

Com o fim da guerra, “A fera judia”, como Hertzo ficou conhecido, migra para os EUA e luta boxe profissional. Lá ele enfrenta adversários lendários e até chega a lutar com Rocky Marciano. Ainda são várias as passagens que mostram as experiências traumáticas dos campos de concentração, de modo que a narrativa não perde a sua tônica.  Passamos então a entender melhor as motivações de Hertzo e o porquê de toda a sua dureza em um final surpreendente.

O fato de esta ter sido uma história real arrepia. O relato  do dia a dia nos campos de concentração sob o ponto de vista de um boxeador é algo diferente do que eu jamais tinha visto no que se refere a memórias sobre o holocausto. Tanto nos ringues como na vida, este homem realmente teve que sobreviver a todas as provações. E sua visão transparece as angústias e frustrações não apenas dos judeus, mas de todos que de alguma forma se envolveram com o nazismo, inclusive os militares. O fato de Hertzko só ter tornado sua história pública em 2009 revela que um relato sincero e sofrido como este é difícil de ser encarado, até pelas pessoas que o vivenciaram. E Reinhard Kleist transformou estas sofridas memórias em uma graphic novel complexa, tão fascinante como perturbadora.

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O Boxeador
Editora 8inverso
Título original: “Der Boxer”
Autor: Reinhard Kleist
Tradução: Augusto Paim
Preto e branco
17cm X 24cm
200 páginas
R$ 54,00