Resenha da HQ O Cabra

resenha o cabra

O Cabra é uma HQ escrita e desenhada por Flávio Luiz, e com cores de Artur Fujita. Ela conta a história de Severino, vulgo O Cabra, um cangaceiro fora da lei cujo bando foi dizimado no dia do seu próprio  casamento. Nessa trajetória de aventura e traição, Severino enfrenta aqueles que o traíram e terá que se deparar com a verdade que por tanto tempo não conseguiu enxergar.

A HQ se passa em um futuro incerto e pós-apocalíptico. A Terra é um planeta quase desértico onde a água potável tornou-se ainda mais preciosa e é privilégio de poucos. Nesse ambiente inóspito, a genética evoluiu para clonagens e hibridizações entre as espécies, tornando comum a presença de clones e seres antropomórficos. Trata-se de uma aventura nordestina futurista, misturando ficção científica, cordel, mangá e faroeste, e que ainda traz violência e uma surpreendente história de amor.

Com essa proposta O Cabra dá um passo à frente no quadrinho brasileiro ao incorporar elementos do quadrinho mundial de aventura, com informações e referências de formas populares de nossa cultura. Essa mistura de ficção científica e realidade nacional inovou e foi bem conduzida, não é a toa que venceu o Troféu HQ Mix de 2011 na categoria Publicação Independente de Autor.

A arte também conquista  pelas variações de ângulos e pelo estilo próximo ao cartum. As expressões criadas para o vocabulário dos personagens dão um humor e um sabor peculiar a esse quadrinho, que contrastam com as cenas mais cruas e sanguinárias, afinal o Cabra gosta de matar suas vítimas arrancando suas cabeças com uma peixeira.

Mas o grande destaque da publicação vai mesmo para o seu formato gigante (25 x 38 cm). Ele impressiona e faz um resgate das extintas páginas dominicais dos jornais, onde os quadrinhos se desenvolveram e tornaram-se populares.

Assim, o interessante é que mesmo fazendo uma obra com características universais próprias aos quadrinhos de aventura e ficção científica(como o ambiente, a presença da tecnologia e de assuntos como clonagem e a distopia) o autor inova pelo sincretismo desses elementos com temáticas nacionais. São inseridos assuntos regionais como a seca e o ainda presente coronelismo e a cumplicidade da religião perante problemas sociais. E tudo muito bem escrito, desenhado, pintado e editado.

O Cabra pagina

O Cabra

Avaliação enquadradinhos: bom

Autor: Flávio Luiz

Cores: Artur Fujita

Editora: Papel A2

56 páginas

Preço: R$ 30,00 em livrarias e R$25,00 diretamente com o autor e em eventos

Resenha da HQ Avenida Paulista

capa av. paulista

Avenida Paulista, de Luiz Gê, é provavelmente uma das histórias menos lidas e mais aclamadas da história dos quadrinhos brasileiros. Publicada originalmente em 1991 com o nome Fragmentos Completos, HQ foi uma encomenda para a Revista Goodyear, de circulação restrita a clientes, revendedores, distribuidores e outros públicos ligados à empresa. A edição lançada pela Quadrinhos na Cia. em 2011 é, portanto, a primeira vez em que a história chega ao público em geral, agora com o nome Avenida Paulista e revisões do autor.

Mesclando pesquisa histórica e iconográfica e o cenário de delírio e fantasia característico dos trabalhos de Luiz Gê, o álbum narra cem anos de transformações ocorridas na avenida que simboliza como nenhum outro lugar o desenvolvimento acelerado e caótico de São Paulo. A narrativa se inicia com a idealização de um boulevard em estilo europeu pelo engenheiro Joaquim Eugênio de Lima, passando pela construção dos grandes casarões, o início da verticalização da cidade e os ambiciosos projetos urbanísticos que nunca saíram do papel até chegar ao cenário atual de engarrafamentos e grandes arranha-céus envidraçados. Desse modo Gê mostra a evolução da avenida desde uma travessia de bois, passando pela transformação em point da aristocracia paulistana até o atual estágio de centro nervoso do capitalismo financeiro.

Desperta atenção como essa trajetória é contada com um misto de ficção e realidade, de cenários e situações surrealistas. Um dos recursos mais bem empregados para ilustrar a velocidade das transformações se dá no descolamento de alguns personagens no tempo, como se a avenida tivesse vida própria e pudesse mudar toda sua paisagem num atravessar de ruas. Textos intercalados aos quadrinhos vão completando o entendimento do leitor com o pano de fundo histórico e social.

Também é interessante notar como a Av. Paulista nasce a partir do claro objetivo de diferenciação de uma elite recém-formada que ansiava dar sinais claros de seu poderio. Nada mais lógico do que escolher a região mais alta da cidade, isolada das fábricas e dos bairros pobres que sofriam com as enchentes. Tratava-se de um sonho bucólico, quase um oásis encravado na região central de uma cidade que crescia assustadoramente. Isso mostra como o poder financeiro foi responsável direto pela construção da cidade, inclusive ditando que usos as regiões teriam e quais seus significados simbólicos.

E a Paulista é a maior expressão disso, pois representa não apenas a força do capital, mas também suas diferentes fases. Daí a demolição sistemática de regiões inteiras, como foi o caso das mansões e boulevards, que deram lugar a empresas e centros comerciais. Isso nos faz pensar que a história da cidade sempre precisa ser recontada, de acordo com os usos que fazem dela. O capital se modifica rapidamente e isso se reflete na cidade, que deve se adaptar na mesma velocidade. E, assim, a cidade está sempre se refazendo.

página av. paulista

Avenida Paulista

Avaliação enquadradinhos: bom

Autor: Luiz Gê

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 88

Preço: R$ 39,00

Mafalda comemora 50 anos

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Mafalda é uma garotinha argentina cheia de questionamentos sobre a vida e a sociedade.Suas histórias comovem crianças e adultos há décadas e suas aventuras já foram traduzidas para cerca de 30 línguas. Em 2014 as tirinhas da  personagem mais anticonformista dos quadrinhos completam 50 anos, continuando muito atuais.

Mafalda se tornou extremamente popular na década de 1970, ao aparecer nas tirinhas do cartunista argentino Joaquín Salvador Lavado, apelidado de Quino. O dia de sua primeira publicação foi 29 de setembro de 1964, na revista Primera Plana. Para Quino essa é a data que deve ser considerada como o nascimento de Mafalda como personagem de tirinhas.

Foi em 1965, quando os quadrinhos com a personagem passaram a ser estampados diariamente no Mundo de Buenos Aires, que sua fama foi alcançada. A menina de seis anos de idade, dona de comentários ácidos, que odiava a guerra, a injustiça e, principalmente, as convenções sem sentido dos adultos, logo fez sucesso por levantar questões pertinentes a sua época.

Mesmo após o jornal falir, em 1967, as tirinhas continuaram em alta. Durante nove anos Quino manteve as publicações, que passaram por vários jornais. Foi em 1973 que o cartunista  percebeu que não poderia usar Mafalda para comentar os assuntos mais recentes e criar coisas novas,  optando por parar de publicá-las.

Mafalda nasceu numa época conturbada, de golpes militares na América Latina e da Guerra do Vietnã. É incrível como 50 anos depois seus temas e contestações não perderam a atualidade, podendo ser usados para pensar os problemas contemporâneos.

Hoje Mafalda continua conquistando pessoas no mundo todo com sua crítica e humor. A menina de cabelos negros, vestido vermelho e fita no cabelo, ao lado de seus amigos Manelito, Filipe, Susanita, Miguelito, Liberdade e uma tartaruga chamada Burocracia cativa um público de diferentes idades e classes sociais.

As homenagens pelo seu 50º aniversário já começaram na Argentina, com a exposição “El Mundo Según Mafalda” (“O Mundo segundo Mafalda”, em livre tradução do espanhol). Ela traz reconstruções de cenas dos quadrinhos desenhados por Quino, além de estátuas dos personagens, jogos, músicas e muitas outras peças interativas. Após passar também por México, Chile e Costa Rica, a mostra está programada para chegar a São Paulo em dezembro deste ano.

mafalda no banco

Resenha da HQ Fagin, O Judeu

capa fagin

No penúltimo livro de Will Eisner, a história de Oliver Twist, romance de Charles Dickens, é recontada sob a perspectiva do judeu Fagin. Trata-se de uma obra polêmica e engajada, na qual um dos maiores quadrinistas de todos os tempos confronta o anti-semitismo em um misto de crítica social e literária.

No livro de Dickens, Fagin é retratado a partir do estereótipo do judeu mesquinho e avarento, que ensina crianças inglesas abandonadas nas ruas a viverem de pequenos furtos. Na visão de Eisner, este tipo de obra contribui muito para um tratamento depreciativo dos judeus, e teria reforçado sua imagem negativa e preconceituosa  na cultura moderna. Embora não seja considerada uma das melhores obras de Eisner, esta pessoalmente é uma das minhas HQs favoritas, em virtude de sua proposta criativa e militante. O interessante é que a história não é uma mera adaptação de Oliver Twist, mas sim um diálogo com esta obra, propondo de fato um novo ponto de vista a respeito dela.

Foi essa a percepção que guiou Will Eisner em Fagin, o Judeu. A obra é um acerto de contas não apenas com Fagin, mas com todos os personagens que representaram a visão anti-semitista na literatura. Na história, Eisner dá foco às condições miseráveis dos judeus imigrantes na Inglaterra do século XIX. Na época, os judeus  asquenazitas vindos da Europa Centro Oriental tinham de enfrentar as ruas de Londres às voltas com a miséria e o preconceito. Desse modo, esses indivíduos meramente subsistiam diante de uma sociedade que não os aceitava.

Fagin não era uma exceção. Sua vida é trágica e cruel, repleta de injustiças e sofrimento. Para sobreviver ele teve de transitar em muitos momentos pela criminalidade. É fácil, durante a leitura, julgar um ato de Fagin e, logo em seguida, nos questionarmos se, diante do contexto, ele tinha alguma outra opção.

A história começa na infância de Fagin, quando ele narra, para o próprio Dickens, sua trajetória de luta pela sobrevivência nos subúrbios de Londres. Com o assassinato de seu pai, teve que roubar alimentos e remédios para sustentar a mãe. Pouco depois, porém, ela morre e um rabino lhe arranja um emprego na casa de um rico sefardita (judeu de ascendência ibérica),  o Sr. Eleazar Salomão. Por um momento, sua vida parece promissora, mas um deslize – um caso amoroso com a filha de um dos sócios do Sr. Salomão – e alguns mal entendidos lhe jogam novamente nas ruas.

De volta ao crime, acaba sendo preso e condenado ao degredo nas colônias, fadado a um destino de frustração, humilhação e a precariedade. De volta a Inglaterra associa-se a um criminoso inglês chamado Sikes, continuando na marginalidade.

Fagin, o judeu  é um verdadeiro panorama das agruras e sucessos dos imigrantes judeus na Inglaterra do século XIX. Além de seu inigualável talento para narrar histórias em quadrinhos, Eisner expõe seu ponto de vista sobre a questão, no prefácio e no posfácio do livro. O livro ainda traz reproduções de charges de famosos ilustradores do século XIX, selecionadas pelo autor, o que o deixa ainda mais rico.

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Fagin, O judeu

Avaliação enquadradinhos: ótimo

Autor: Will Eisner

Tradutor: André Conti

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 120

Preço: R$ 38,00

1º Encontro Lady’s Comics – “Transgredindo a representação feminina nos Quadrinhos”

lady's Comics

Quadrinhos não são apenas para homens. É isso mesmo, mulheres produzem, leem e escrevem sobre quadrinhos. É isso o que a Lady’s Comics, site que desde 2010 discute e pesquisa a representação das mulheres nos quadrinhos, quer mostrar e debater no 1º Encontro Lady’s Comics – “Transgredindo a representação feminina nos Quadrinhos”, evento que reunirá quadrinistas, estudiosos e público em diversas atividades e discussões.

O objetivo  é transpor o meio online e fazer o primeiro evento a discutir mulheres e quadrinhos no Brasil. Durante esses quatro anos, o site administrado pelas jornalistas Mariamma Fonseca e Samara Horta e pela designer Samanta Coan, realizou um amplo trabalho não só de divulgação de trabalhos autorais como também de pesquisa e divulgação de como as mulheres tem sido representadas no universo da nona arte.

Embora as opiniões sobre essas questões sejam as mais diversas, há um consenso de que o que prepondera é uma forte estereotipação da figura feminina nos quadrinhos. O que se observa é que personagens femininas raramente são as protagonistas das histórias, relegadas a coadjuvantes que geralmente servem aos propósitos amorosos do personagem principal. Sem falar na postura sexualizada e delicada que são atributos qualificadores dessas personagens, então destinadas a esperar de maneira  banal e não raras as vezes fútil que o herói da história, o homem corajoso e destemido, salve o dia.

Esses esteriótipos influem também no mercado editorial, já que reforçam o senso comum de que quadrinhos são feitos de homens para homens. É raro encontrar trabalhos feitos por mulheres que despontem. Muitas vezes, as marcas do gênero acabam por relegar às mulheres o perfil de desenhar coisas fofas e delicadas, o que é um obstáculo para as artistas. Mulheres também gostam de terror e ação, como inclusive pode se observar uma série de trabalhos independentes feitos por mulheres, e que possuem estas temáticas.

Por isso, o encontro pretende reunir quem quer debater as formas de transgredir a representação feminina nos quadrinhos com mesas temáticas, uma exposição, uma oficina de fanzine, intervenções e, principalmente, reflexões e questionamentos sobre o assunto.

O evento já tem data e local: 25 de outubro, no centro de Belo Horizonte. Mas para que ele de fato ocorra, a Lady’s Comics precisa de uma forcinha para angariar com os custos do projeto, que está aberto para financiamento coletivo via Catarse. As recompensas para quem contribuir estão muito boas, entre bottons, cadernos, bolsa, marcadores e posters exclusivos ilustrados por artistas brasileiras que apoiam a causa.

Por enquanto as entradas para o encontro, que fazem parte das recompensas, já estão quase esgotadas. Mas, se a verba para a sua execução for superada, há a possibilidade de existir um segundo dia de atividades. Vale muito a pena apoiar este projeto, já que será o primeiro evento do Brasil que discutirá mulheres e quadrinhos, sendo este de suma importância para registrar a memória de todas aquelas que lutam para transgredir a representação das mulheres neste universo.

A programação do evento e as recompensas para quem contribuir podem ser conferidas pelo site:

http://www.catarse.me/pt/ladyscomics

Para conhecer mais sobre a Lady’s Comics, acesse o site:

http://ladyscomics.com.br/

Resenha da HQ Bordados

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Bordados é a terceira obra de Marjane Satrapi, lançada em 2010 pela Companhia das Letras. Mais uma vez a autora iraniana surpreende com uma narrativa dinâmica e gostosa, marcada pelo seu peculiar humor ácido e feminismo mordaz

O “bordar” iraniano seria equivalente ao nosso ao nosso “tricotar”, ou fofocar, além de possuir outra acepção importantíssima para as mulheres iranianas. A expressão bordado designa também a cirurgia de reconstituição do hímen, uma decisão pragmática para aquelas que não abrem mão de ter vida sexual antes do casamento mas que são coibidas a corresponder às expectativas moralistas do país.

Assim como em outros livros, Marjane traz histórias das mulheres iranianas de sua família e lembranças de sua  infância. A narrativa se passa nos momentos após os almoços de família na casa da avó de Marjane Satrapi, em Teerã. Eles terminavam sempre da mesma maneira:  enquanto os homens iam fazer a sesta, as mulheres lavavam a louça e se reuniam para tomar chá. Era um momento pelo qual todas esperavam avidamente, já que, longe dos homens, podiam compartilhar seus sentimentos, ambições e frustrações.

Marjane, a mãe, a avó e suas amigas começavam então a contar suas desventuras com os homens, o amor e sua cultura opressiva ao sexo feminino. Entre uma xícara e outra, cada mulher começava a desfiar suas experiências e opiniões pessoais, além de fofocar sobre a vida alheia. É interessante notar que nesse grupo cada mulher tem uma relação distinta com a moral e vivências amorosas bastante variadas, mas que no entanto sempre estão às voltas com o machismo e a tradição.

O traço simples e os textos em letra corrida acentuam a intimidade que a a narrativa promove. A sensação é de se estar participando do chá ao lado dessas mulheres. Constantemente me coloquei no lugar de cada uma delas em suas histórias, e até de de Marjane, que era então apenas uma criança. Entre casamentos azarados, virgindades roubadas, adultérios, frustrações, golpes e autoenganos narrados com bastante ironia, tem-se um misto de riso e tristeza.

Num episódio narrado pela avó, uma mulher entra em pânico antes do casamento porque perdeu a virgindade com o seu verdadeiro amor e tem medo de que o futuro marido descubra o fato justo na noite de núpcias. A avó sugere então que ela leve uma lâmina de barbear para a cama, grite muito durante o sexo e faça um pequeno corte em si mesma para simular o hímen rompido. A mulher aceita as sugestões, mas, na hora H, acaba cortando o testículo do marido. Todas caem na gargalhada porque o sujeito preferiu ficar quieto e casado do que correr o risco de virar piada dos amigos.

Com Bordados, desconstruímos uma série de visões comuns a respeito do Irã, principalmente sobre as mulheres. Ao contrário do que se imagina, muitas iranianas falam abertamente sobre sexo e discutem as tradições, procurando meios de serem livres. Seja por meio de estratégias, traições, cirurgias ou fugas, essas mulheres gritam suas opiniões, mesmo que secretamente e com muita frustração e sofrimento.

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Bordados

Autora: Marjane Satrapi

Editora: Companhia das Letras

136 páginas

R$ 39,00

 

 

Quadrinhos contra a corrupção: O Doutrinador

o doutrinador capa

O Doutrinador  é  um quadrinho brasileiro independente produzido pelo designer Luciano Cunha.  A história virou fenômeno nas redes sociais  por trazer um personagem polêmico justo às vésperas das manifestações de junho de 2013.  Trata-se de um justiceiro cujo objetivo é aniquilar os responsáveis pela corrupção no Brasil.

Embora a ideia do vigilante seja muito comum sobretudo entre os quadrinhos de super heróis, este personagem inova por ter suas incursões inseridas em casos reais do contexto político brasileiro.  São acontecimentos divulgados pela mídia,  mas que são negligenciados pelo Judiciário e caem no esquecimento.

A revolta e indignação com a corrupção e impunidade  levaram à criação de O Doutrinador, um justiceiro brasileiro que faria o acerto de contas com a classe política brasileira, custe o que custar. O uniforme militar, a camiseta do Sepultura e máscara de gás da II Guerra Mundial completam o perfil deste vigilante que vive à margem da lei e ninguém conhece  o nome.

O personagem foi criado por Luciano Cunha em 2008, mas somente em 2010 foi registrado e enviado para as editoras. Nesta época a HQ não escondia a aparência e nomes verdadeiros de políticos brasileiros, e por isso as editoras optaram por não publicá-la considerando a possibilidade de sofrerem processos.

Cunha então optou por publicar as páginas da HQ nas redes sociais, de maneira independente. Os primeiros capítulos de O Doutrinador começaram a ser postados em abril de 2013.  Dois meses depois, as manifestações de rua que se espalharam por todo o país potencializaram a audiência do personagem.

Um dia após publicar história em que o Doutrinador segue para São Paulo, eclode na  metrópole um protesto pela redução da passagem de ônibus, marcado pela forte repressão policial. Luciano se atualizou e já tinha o necessário para criar  a próxima tira, que mostraria o enfrentamento do personagem com a tropa de choque.

Assim como foi a força motriz nas manifestações de junho de 2013, a internet também mostra seu potencial na produção e divulgação de quadrinhos independentes.  Esse trabalho é mais um ilustre exemplo, que merece ser conhecido.

Devido ao grande sucesso, a história ganhou site próprio e versão impressa. É uma edição caprichada com 84 páginas, papel de qualidade, capa e miolo coloridos.

Mais informações pelo site:

http://www.odoutrinador.com.br/

E pela Fanpage no Facebook, que já conta com 36 mil curtidas:

https://www.facebook.com/leiaodoutrinador

 

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Resenha da HQ O Boxeador

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O Boxeador conta a história real do pugilista polonês Hertzko Haft, que sobreviveu aos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. Esta Graphic Novel premiada no Festival de Lyon é baseada na biografia escrita pelo filho de Hertzko, Alan Haft, intitulada Um Dia Eu Contarei Tudo: Uma História de Sobrevivência . A adaptação de Reinhard Kleist para os quadrinhos traz 200 páginas de tirar o fôlego, com a história real de um homem que se endureceu para não cair. 

O cenário  é a Polônia no final dos anos 1930, em plena Segunda Guerra Mundial. Para sobreviver, a família do jovem judeu Hertzko Haft contrabandeava através da fronteira que dividia o país em dois, devido à ocupação alemã. Acidentalmente preso pela SS, Hertzo foi confinado nos campos de concentração nazistas.Ele então se vê obrigado a criar estratégias de sobrevivência para conseguir lidar com os horrores diários promovidos pelo autoritarismo dos nazistas alemães e o sofrimento dos colegas judeus. Conquistando a simpatia de alguns oficiais, logo extravasou toda a sua raiva e frustração nos ringues improvisados dos campos de concentração, construídos para a diversão dos nazistas. Cercado de violência, desumanidade e morte, não lhe restava outra escolha senão vencer.

É interessante observar como o traço de Kleist vai fica mais sujo e grosseiro a cada dia que se passa na história. As expressões faciais e emoções dos personagens vão sendo dissolvidas conforme a luta pela sobrevivência exige das suas capacidades individuais. A realidade de Auscwitz, a fome, as lutas  e mortes exigem de Hertzko que ele endureça sua personalidade. A frieza e calculismo  são mobilizadas também por militares, que muitas vezes não são afeitos à ideologista nazista e também tem de negociar e estabelecer acordos  para sobreviver, nem que este processo envolva traição e corrupção.  De algum modo a Graphic Novel mostra os dois lados do regime nazista, o que dá ainda mais realismo à narrativa.

Com o fim da guerra, “A fera judia”, como Hertzo ficou conhecido, migra para os EUA e luta boxe profissional. Lá ele enfrenta adversários lendários e até chega a lutar com Rocky Marciano. Ainda são várias as passagens que mostram as experiências traumáticas dos campos de concentração, de modo que a narrativa não perde a sua tônica.  Passamos então a entender melhor as motivações de Hertzo e o porquê de toda a sua dureza em um final surpreendente.

O fato de esta ter sido uma história real arrepia. O relato  do dia a dia nos campos de concentração sob o ponto de vista de um boxeador é algo diferente do que eu jamais tinha visto no que se refere a memórias sobre o holocausto. Tanto nos ringues como na vida, este homem realmente teve que sobreviver a todas as provações. E sua visão transparece as angústias e frustrações não apenas dos judeus, mas de todos que de alguma forma se envolveram com o nazismo, inclusive os militares. O fato de Hertzko só ter tornado sua história pública em 2009 revela que um relato sincero e sofrido como este é difícil de ser encarado, até pelas pessoas que o vivenciaram. E Reinhard Kleist transformou estas sofridas memórias em uma graphic novel complexa, tão fascinante como perturbadora.

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O Boxeador
Editora 8inverso
Título original: “Der Boxer”
Autor: Reinhard Kleist
Tradução: Augusto Paim
Preto e branco
17cm X 24cm
200 páginas
R$ 54,00

 

Os Quadrinhos e a Copa

A Copa está chegando e mais uma vez os quadrinhos ganham espaço como mídia ao divulgar informações e opiniões com relação a este grande evento. Agora, o principal evento de futebol do mundo acontece no Brasil, e o que se observa é uma proliferação de charges que tratam do assunto, seja por meio do humor, da crítica ou da retratação de acontecimentos históricos.

Referência no cenário do jornalismo independente, a Agência Pública de Jornalismo Brasileiro publicou  sua primeira experiência de reportagem em formato de quadrinhos. Meninas em Jogo, assinada pela jornalista Andrea Dip e o quadrinista Alexandre de Maio, revela a teia da exploração e do turismo sexual infantil para a Copa do Mundo na cidade de Fortaleza, no Ceará, uma das 12 cidades-sede do mundial. A pauta surgiu em março de 2013 durante uma entrevista com a advogada Magnólia Said, que denunciou o aliciamento de meninas no interior da capital cearense.

A reportagem em quadrinhos é dividida em prólogo e cinco capítulos que trazem as narrativas das diversas fontes consultadas, além da repórter e do quadrinista, que também participam da narrativa. A reportagem  recebeu o prêmio do VII Concurso Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, e revela como esta é uma linguagem que traz muitos recursos e tem grande potencial.

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A história pode ser acessada na íntegra por meio deste link: http://apublica.org/2014/05/hq-meninas-em-jogo/#ancora

Seguindo a onda do jornalismo em quadrinhos, que vem ganhando cada vez mais espaço, três grandes portais de notícias não ficaram de fora e também lançaram séries em quadrinhos sobre futebol aproveitando o ano de Copa do Mundo. O Estadão lançou a série Histórias (do penta) em quadrinhos que narra acontecimentos dos títulos de 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002. Já o portal UOL lançou uma série que conta a história do craque Josimar, com a sequência Josimar brilha após “bullying” de Telê, Trapaça argentina e Desdém brasileiro. A revista Serafina, da Folha, lançou uma saga em quadrinhos que conta a emocionante trajetória do atacante da seleção brasileira Givanildo Vieira de Souza, comicamente conhecido como Hulk. 

Futebol e quadrinhos sempre andaram muito próximos no Brasil, principalmente no humor gráfico. Brincadeiras com os traços dos jogadores e com os resultados dos jogos e críticas à organização das Copas já foram tema de grandes nomes dos quadrinhos nacionais, tais como Henfil, Ziraldo, Angeli e Chico Caruso.  O material destes artistas é vasto e poderá ser acessado pelo público a partir do dia 1º de junho na exposição Figurões da Copa, que acontecerá no SESC Belenzinho. A exposição é gratuita e ficará em cartaz até 17 de julho.

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Resenha do livro Humor paulistano: a experiência da Circo Editorial 1984 – 1995

A primeira resenha do blog é dedicada a um livro lançado recentemente, e que eu devorei praticamente em uma tacada só! Humor paulistano: a experiência da Circo Editorial 1984 – 1995 nos traz 432 páginas da história da Circo Editorial e uma seleção de suas principais publicações. Organizado por Toninho Mendes, fundador da Circo Editorial, e editado  pela SESI São Paulo, o livro já pode ser encontrado nas livrarias. O valor de R$120  é salgado, mas vale muito a pena.

Mesmo fora das bancas há um tempo, os títulos da Circo sem dúvida mexeram com uma geração que enfrentava desafios políticos e identitários frente à recente abertura democrática e uma economia com índices inflacionários galopantes.

Acredito que os quadrinhos são poderosos instrumentos para se modificar a realidade em que vivemos. Na minha opinião a Circo Editorial alcançou esse objetivo com criatividade e bom humor. As histórias trazem uma crítica ácida endereçada não a um partido, costume ou ideologia específicas, mas a todo um imaginário existente acerca dos bons costumes. A direita, a esquerda, os drogados, os punks, os solteirões, o casal apaixonado… Todos os grupos urbanos em formação neste contexto de ebulição social não escaparam do humor crítico e escatológico das tirinhas.

Nasci em 1991 e por isso não tive a oportunidade de acompanhar os títulos da Circo nas bancas. Apesar disso, observo que Chiclete com Banana, Níquel Náusea, Geraldão e Piratas do Tietê ainda povoam o imaginário cultural brasileiro, assim como seus autores. Ao mencionar produção de quadrinhos no Brasil, não podemos deixar de pensar em Angeli, Laerte, Glauco e Luiz Gê, grandes nomes que se dedicaram à Circo em boa parte de suas carreiras. O livro tem o potencial de mostrar para uma nova geração este período que revolucionou a história das HQs nacionais em um período político e econômico extremamente conturbado.

As críticas presentes nas tirinhas e o iconismo personagens  permanecem incrivelmente atuais e são um bom instrumentos para se pensar a realidade brasileira com muito bom humor. Sem dúvida estas revistas representam um marco da cultura nacional, e nada mais justo que quase vinte anos após o fim da Circo elas sejam homenageadas. O livro ainda traz um encarte com o poema-revista A confissão para o Tietê, escrito por Toninho Mendes e ilustrado por Jaca, que me fez rir e me emocionar ao refletir sobre nosso rio paulistano, tão próximo porém tão esquecido pela população.

Quando era criança nunca gostei muito de revistas de super-heróis. Além da Turma da Mônica, meu primeiro contato com quadrinhos foram as tirinhas de jornal. Mesmo que não as entendesse completamente, elas me marcaram. Geraldão, Piratas do Tiete e Níquel Náusea sem dúvida marcaram a muitos. Inclusive a mim.

ImagemHumor Paulistano: a experiência da Circo Editorial 1984 – 1995

Organização Toninho Mendes

SESI editora/432 páginas/R$120