Resenha da HQ Avenida Paulista

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Avenida Paulista, de Luiz Gê, é provavelmente uma das histórias menos lidas e mais aclamadas da história dos quadrinhos brasileiros. Publicada originalmente em 1991 com o nome Fragmentos Completos, HQ foi uma encomenda para a Revista Goodyear, de circulação restrita a clientes, revendedores, distribuidores e outros públicos ligados à empresa. A edição lançada pela Quadrinhos na Cia. em 2011 é, portanto, a primeira vez em que a história chega ao público em geral, agora com o nome Avenida Paulista e revisões do autor.

Mesclando pesquisa histórica e iconográfica e o cenário de delírio e fantasia característico dos trabalhos de Luiz Gê, o álbum narra cem anos de transformações ocorridas na avenida que simboliza como nenhum outro lugar o desenvolvimento acelerado e caótico de São Paulo. A narrativa se inicia com a idealização de um boulevard em estilo europeu pelo engenheiro Joaquim Eugênio de Lima, passando pela construção dos grandes casarões, o início da verticalização da cidade e os ambiciosos projetos urbanísticos que nunca saíram do papel até chegar ao cenário atual de engarrafamentos e grandes arranha-céus envidraçados. Desse modo Gê mostra a evolução da avenida desde uma travessia de bois, passando pela transformação em point da aristocracia paulistana até o atual estágio de centro nervoso do capitalismo financeiro.

Desperta atenção como essa trajetória é contada com um misto de ficção e realidade, de cenários e situações surrealistas. Um dos recursos mais bem empregados para ilustrar a velocidade das transformações se dá no descolamento de alguns personagens no tempo, como se a avenida tivesse vida própria e pudesse mudar toda sua paisagem num atravessar de ruas. Textos intercalados aos quadrinhos vão completando o entendimento do leitor com o pano de fundo histórico e social.

Também é interessante notar como a Av. Paulista nasce a partir do claro objetivo de diferenciação de uma elite recém-formada que ansiava dar sinais claros de seu poderio. Nada mais lógico do que escolher a região mais alta da cidade, isolada das fábricas e dos bairros pobres que sofriam com as enchentes. Tratava-se de um sonho bucólico, quase um oásis encravado na região central de uma cidade que crescia assustadoramente. Isso mostra como o poder financeiro foi responsável direto pela construção da cidade, inclusive ditando que usos as regiões teriam e quais seus significados simbólicos.

E a Paulista é a maior expressão disso, pois representa não apenas a força do capital, mas também suas diferentes fases. Daí a demolição sistemática de regiões inteiras, como foi o caso das mansões e boulevards, que deram lugar a empresas e centros comerciais. Isso nos faz pensar que a história da cidade sempre precisa ser recontada, de acordo com os usos que fazem dela. O capital se modifica rapidamente e isso se reflete na cidade, que deve se adaptar na mesma velocidade. E, assim, a cidade está sempre se refazendo.

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Avenida Paulista

Avaliação enquadradinhos: bom

Autor: Luiz Gê

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 88

Preço: R$ 39,00

Resenha da HQ Fagin, O Judeu

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No penúltimo livro de Will Eisner, a história de Oliver Twist, romance de Charles Dickens, é recontada sob a perspectiva do judeu Fagin. Trata-se de uma obra polêmica e engajada, na qual um dos maiores quadrinistas de todos os tempos confronta o anti-semitismo em um misto de crítica social e literária.

No livro de Dickens, Fagin é retratado a partir do estereótipo do judeu mesquinho e avarento, que ensina crianças inglesas abandonadas nas ruas a viverem de pequenos furtos. Na visão de Eisner, este tipo de obra contribui muito para um tratamento depreciativo dos judeus, e teria reforçado sua imagem negativa e preconceituosa  na cultura moderna. Embora não seja considerada uma das melhores obras de Eisner, esta pessoalmente é uma das minhas HQs favoritas, em virtude de sua proposta criativa e militante. O interessante é que a história não é uma mera adaptação de Oliver Twist, mas sim um diálogo com esta obra, propondo de fato um novo ponto de vista a respeito dela.

Foi essa a percepção que guiou Will Eisner em Fagin, o Judeu. A obra é um acerto de contas não apenas com Fagin, mas com todos os personagens que representaram a visão anti-semitista na literatura. Na história, Eisner dá foco às condições miseráveis dos judeus imigrantes na Inglaterra do século XIX. Na época, os judeus  asquenazitas vindos da Europa Centro Oriental tinham de enfrentar as ruas de Londres às voltas com a miséria e o preconceito. Desse modo, esses indivíduos meramente subsistiam diante de uma sociedade que não os aceitava.

Fagin não era uma exceção. Sua vida é trágica e cruel, repleta de injustiças e sofrimento. Para sobreviver ele teve de transitar em muitos momentos pela criminalidade. É fácil, durante a leitura, julgar um ato de Fagin e, logo em seguida, nos questionarmos se, diante do contexto, ele tinha alguma outra opção.

A história começa na infância de Fagin, quando ele narra, para o próprio Dickens, sua trajetória de luta pela sobrevivência nos subúrbios de Londres. Com o assassinato de seu pai, teve que roubar alimentos e remédios para sustentar a mãe. Pouco depois, porém, ela morre e um rabino lhe arranja um emprego na casa de um rico sefardita (judeu de ascendência ibérica),  o Sr. Eleazar Salomão. Por um momento, sua vida parece promissora, mas um deslize – um caso amoroso com a filha de um dos sócios do Sr. Salomão – e alguns mal entendidos lhe jogam novamente nas ruas.

De volta ao crime, acaba sendo preso e condenado ao degredo nas colônias, fadado a um destino de frustração, humilhação e a precariedade. De volta a Inglaterra associa-se a um criminoso inglês chamado Sikes, continuando na marginalidade.

Fagin, o judeu  é um verdadeiro panorama das agruras e sucessos dos imigrantes judeus na Inglaterra do século XIX. Além de seu inigualável talento para narrar histórias em quadrinhos, Eisner expõe seu ponto de vista sobre a questão, no prefácio e no posfácio do livro. O livro ainda traz reproduções de charges de famosos ilustradores do século XIX, selecionadas pelo autor, o que o deixa ainda mais rico.

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Fagin, O judeu

Avaliação enquadradinhos: ótimo

Autor: Will Eisner

Tradutor: André Conti

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 120

Preço: R$ 38,00

Resenha da HQ Habibi

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Habibi, mais uma obra prima de Craig Thompson , pode ser considerada o trabalho mais audacioso deste autor. Esta história maravilhosa e cativante nos traz uma fábula sobre o Oriente rica e sensível, desmontada e remontada constantemente em um relicário de outras histórias. Entre pesquisas sobre o mundo árabe, Thompson levou nada menos do que sete anos para completar o livro, o que é mais do que justificado pelo enredo e arte expostos em suas belíssimas 672 páginas.

Esta premiada graphic novel conta a saga de dois escravos fugitivos, unidos e separados pelo destino, vivendo no limite que separa a tradição da descoberta.  Dodola, uma garota independente e perspicaz que é vendida como escrava aos 9 anos, torna-se com tão pouca idade responsável por um bebê que encontra no mercado de pessoas, o então pequeno Zam. Juntos eles passam a viver no deserto em um navio naufragado na areia.  Em meio a sentimentos cada vez mais conflitantes, eles passam o tempo contando histórias. Assim, somos apresentados também à origem do islamismo e de suas tradições, conforme as narrativas se combinam numa trama de aventura, romance, filosofia e tragédia.

A impossibilidade de permanecerem escondidos os força a sair de seu antro seguro, e a partir daí acompanhamos os laços de amor e carinho entre ambos serem testados pelas suas vidas, que preenche seus caminhos com rumos diferentes, doídos e muito inesperados. É a cumplicidade entre ambos  que os move a construir suas trajetórias na luta pela sobrevivência.

A jornada é ambientada em um país fictício do Oriente Médio, onde são misturados elementos distópicos e fantásticos inspirados em  histórias árabes, como o Corão e as Mil e Uma Noites. Deles é que Thompson colheu o  estilo do livro, recheado da caligrafia árabe e narrativas sagradas, que  são mescladas com maestria em um cenário fantasioso, repleto de lendas e histórias, que dão o tom de seu conteúdo histórico, mítico, religioso, filosófico e, sobretudo, humano.

Uma das marcas em suas obras são as belíssimas metáforas casando perfeitamente o seu texto com os desenhos. E aqui a influência da cultura arábica se mescla sem igual, pois os intrincados mosaicos, caligrafia oriental e os belíssimos textos fluem em uma cadência de páginas. Isso é feito sempre com uma relação bem comedida entre o racional e o intangível. Um exemplo é que  Thompson descreve, no decorrer da trama, parte da história simbólica das letras e palavras árabes entrelaçando-as de maneira bela e criativa com o próprio enredo.

De certa forma, a obra é uma reação à xenofobia americana, que se agravou pós atentado 11 de setembro, na tentativa de mostrar ao Ocidente um mundo islâmico que difere dos esteriótipos. A obra é acima de tudo sobre o amor e suas diversas formas de manifestação, sobre os sacrifícios que fazemos por ele, em contrapartida com o que existe de mais podre e cruel nos próprios seres humanos.

Ao mesmo tempo, temas delicados também não são evitados. A culpa e vergonha relativa aos próprios instintos e fantasias, e como esses sentimentos podem levar à dor, mutilação e envelhecimento. Como o sexo e a gravidez afetam não apenas como as pessoas se sentem, mas quem elas são. Temas pesados como estupro, violência e escravidão também são abordados sem comedimento.

Estas são questões que sempre estiveram presentes e que afetam toda a humanidade. Crítica social, questionamentos ecológicos, paralelos entre religião e amor: tudo encontra seu lugar nesta narrativa tão épica quanto particular e  que merece ser lida e relida.

 

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Habibi  
Avaliação enquadradinhos: ótimo
Autor:  Craig Thompson
672 páginas
Tradução: Érico Assis
Editora: Quadrinhos na Cia.
Preço: R$ 45,00

Resenha da HQ Daytripper

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Daytripper é uma graphic novel que fala sobre a vida e a morte a partir de eventos importantes que ocorrem entre as duas. Trata-se de uma história tocante que nos leva a refletir sobre esses pequenos eventos, as realizações nas nossas vidas e o que deixamos para trás quando o inevitável ocorre. Mais uma vez os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá mostram seu potencial para contar histórias, nesta HQ  ganhadora de prêmios importantes, como o Eisner e o Jabuti.

A HQ conta a história de Brás de Oliva Domingos, milagroso filho de um mundialmente famoso escritor brasileiro que sonha em trilhar o mesmo caminho do pai. Em nosso primeiro contato com o protagonista, então com 32 anos, vemos um homem frustrado, vivendo à sombra do pai e preso em um trabalho que não o estimula nem o realiza. Ele é apenas um jornalista responsável pela coluna de obituários de um jornal da cidade de São Paulo, que escreve diariamente sobre a morte de outros, sem nunca começar a sua própria vida.

A partir daí, cada um dos dez capítulos mostra um período da vida de Brás de modo não linear: ora o vemos com 21 anos, encontrando aquela que parece ser a mulher da sua vida numa aventura cheia de misticismo passada na Bahia; ou com 41, vivendo a emoção do nascimento do primeiro filho ao mesmo tempo que tem de enfrentar a perda do pai; se emocionando com a sensação arrebatadora do primeiro beijo aos 11 anos; ou aos 38, quando busca incessantemente seu amigo Jorge, desaparecido há anos; e vivendo o sucesso como escritor aos 47 anos em uma turnê de divulgação pelo país.

Nesse movimento de idas e voltas, as vidas que ele teve/poderia ter/terá vão se revelando diante de nossos olhos. Através desses pequenos vislumbres, nós montamos aos poucos o quebra-cabeça da existência de Brás: vamos conhecendo-o melhor por meio das suas amizades, namoros, sonhos, casamento e do seu relacionamento com seu pai. Os capítulos sempre terminam com a inevitável morte do personagem, mas nos dizem muito sobre os pequenos instantes pelos quais sua vida se constitui.

Os desenhos magistrais da dupla Bá & Moon ganham uma nova dimensão nessa história. Ela  é contada com um lirismo tênue, interpolada por cenas amargas e cruas, que a fazem oscilar delicadamente entre o real e o mágico, sem que fique claro, jamais, em qual dos dois a trama verdadeiramente se passa.

Apesar de ter o nome da música dos Beatles e de ter saído primeiro no exterior e só depois traduzida para o português, Daytripper se passa no Brasil, seus personagens são brasileiros e o nome do protagonista é uma clara referência a um dos mais clássicos personagens de Machado de Assis. A adaptação traz um Brás Cubas da vida urbana e pós-moderna, mas que também tem de lidar com as mesmas dúvidas e incertezas inescapáveis à existência humana já trabalhadas na obra de  Machado de Assis. As mortes de Brás de Oliva Domingos nos fazem aprender mais sobre a vida e o quão efêmera ela pode ser.

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 Daytripper

Avaliação enquadradinhos: bom

Autores: Fábio Moon e Gabriel Bá (roteiro e arte)

Editora: Vertigo

Preço: R$ 45,00 (capa mole) e R$ 55,00 (capa dura)

250 páginas

Resenha da HQ Três dedos – Um escândalo animado

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Três Dedos – Um Escândalo Animado é uma graphic novel escrita e ilustrada por Rich Koslowski. A paródia a personagens famosos dos desenhos animados e ao aparente ilimitado império dos estúdios Disney e Warner Bros é trabalhado de maneira envolvente, cômica mas não menos ácida, nesta HQ vencedora do prêmio Ignatz Award de 2003.

A obra mostra a trajetória do cinema de animação em um mundo onde os humanos dividem espaço com os animados, seres antropomórficos considerados cidadãos de segunda categoria, que vivem em guetos e são desprezados pela sociedade. Nesse contexto o jovem cineasta Dizzy Walters descobre o talentoso Rickey Rat, um ator animado que, inusitadamente,  se torna uma grande estrela.

A parceria entre Ricky e Dizzy conquista Hollywood e se mantém hegemônica no cinema de animação, até que rumores sobre um escândalo terrível ameaça seu império. Em entrevistas exclusivas com figuras importantes do universo animado,   tais como o coelho Pernalouca, o leitão Engasguinho, o passarinho Liu-Liu, Leon Rey e o Pato Nildo,  o leitor é conduzido a desvendar o mistério que envolve o monopólio de Rickey nos cinemas, e de que maneira isso determinaria o destino de muitos outros personagens animados.

O roteiro é muito bem estruturado, revelando seus segredos de forma cadenciada. A narrativa se desmembra em forma de uma reportagem – documentário, o que agiliza a leitura e envolve o leitor. É por meio de fotos e depoimentos que procura-se compreender a possível ligação entre as figuras centrais da indústria cinematográfica e  a predominância de personagens com três dedos nas animações, e ainda se isso teria relação com a especulação de um determinado “ritual” ao qual todos os atores animados aspirantes deveriam se submeter.

A paródia dos personagens é muito bem feita, e por isso merece ser destacada. Os diálogos são pontuados por gírias e sotaques, além de balões e letreiramentos característicos. Não faltam referências e brincadeiras com os personagens clássicos de desenhos animados da Disney e da Warner, que se cruzam com  figuras históricas tais como  Kennedy, Martin Luther King Jr. e Marilyn Monroe.

Um misto de conspiração política e  jornalismo sensacionalista dá a sensação de presenciarmos uma história que certamente não está gibi, nem nos cinemas, nem no mundo real, mas, ao mesmo tempo, está. Humor negro e crítica social estão inscritas na injustiça, mutilação e ruína de tantas vidas que passaram pela indústria do entreterimento. Certamente você nunca mais verá  personagens de desenhos da mesma forma.

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Três dedos: Um escândalo animado
Roteiro e Arte: Rich Kowslowski

Tradução: Eliane Gallucci e Maurício Muniz

Formato: 21 x 26 cm

144 páginas em preto e branco

Gal Editora

Preço: R$ 39,90

 

Resenha da HQ KM Blues

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KM Blues é uma HQ independente, lançada pelo selo HQemFoco, e fez parte do ProAC 2011 – Programa de Ação Cultural do estado de São Paulo de histórias em quadrinhos. A graphic novel conta a História de Flávio, um homem de meia idade recém divorciado que passa por uma crise existencial e cai na estrada buscando reconstruir seu passado. À procura de respostas que possam ajudá-lo em um novo momento de sua vida, ele visita vários lugares importantes de sua trajetória, reencontrando pessoas e revivendo sentimentos.

Em seu percurso, ele encontra de forma inusitada o célebre músico carioca Cartola, sambista falecido que traz um toque especial a este enredo de Road Movie. A trilha sonora da trama, que mistura blues e samba, intermeada por conversas do protagonista com Cartola, dão a tônica da narrativa. Daniel Esteves conseguiu  produzir uma aventura realista e charmosa, com problemas que perpassam a vida de qualquer indivíduo, mas que são trabalhados com um toque de fantasia. Ficção e realidade se misturam com maestria nesta história que puxa o leitor para dentro das páginas, e que promete um final surpreendente.

Trata-se de uma visão poética de vivências que, muitas vezes, ignoramos no nosso cotidiano. A trama em que Flávio se envolve remonta a situações  comuns em nossas vidas, como encontros e desencontros,  oportunidades deixadas para trás, escolhas certas e erradas, enquanto que a figura enigmática de seu companheiro de viagem traz sabedorias de vida e a esperança de um recomeço.

Vale destacar também a incrível arte de Wanderson de Souza, que traz um traço simples, bonito e perfeito, e as cores do Wagner de Souza, tão realistas que parecem até pinceladas no papel. De modo geral, a HQ possui muita qualidade. Não é à toa que ganhou o prêmio HQmix 2013 de Melhor Publicação Independente Edição Única.

A busca por reencontrar o significado para a própria vida, passando pelo enfrentamento com diferentes “pontas soltas” do passado, a família, lugares, amigos e o grande amor. De que maneira nossas escolhas e vivências nos tornam quem somos? É possível mudar? KM Blues é uma história de estrada, mas que se atem mais às curvas do que ao próprio  caminho.

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KM Blues
Roteiro: Daniel Esteves
Desenho: Wanderson de Souza
Cor: Wagner de Souza
Cor Base: William Gene
16 x 25 cm
104 páginas
R$ 25,00

Resenha da HQ O Boxeador

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O Boxeador conta a história real do pugilista polonês Hertzko Haft, que sobreviveu aos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. Esta Graphic Novel premiada no Festival de Lyon é baseada na biografia escrita pelo filho de Hertzko, Alan Haft, intitulada Um Dia Eu Contarei Tudo: Uma História de Sobrevivência . A adaptação de Reinhard Kleist para os quadrinhos traz 200 páginas de tirar o fôlego, com a história real de um homem que se endureceu para não cair. 

O cenário  é a Polônia no final dos anos 1930, em plena Segunda Guerra Mundial. Para sobreviver, a família do jovem judeu Hertzko Haft contrabandeava através da fronteira que dividia o país em dois, devido à ocupação alemã. Acidentalmente preso pela SS, Hertzo foi confinado nos campos de concentração nazistas.Ele então se vê obrigado a criar estratégias de sobrevivência para conseguir lidar com os horrores diários promovidos pelo autoritarismo dos nazistas alemães e o sofrimento dos colegas judeus. Conquistando a simpatia de alguns oficiais, logo extravasou toda a sua raiva e frustração nos ringues improvisados dos campos de concentração, construídos para a diversão dos nazistas. Cercado de violência, desumanidade e morte, não lhe restava outra escolha senão vencer.

É interessante observar como o traço de Kleist vai fica mais sujo e grosseiro a cada dia que se passa na história. As expressões faciais e emoções dos personagens vão sendo dissolvidas conforme a luta pela sobrevivência exige das suas capacidades individuais. A realidade de Auscwitz, a fome, as lutas  e mortes exigem de Hertzko que ele endureça sua personalidade. A frieza e calculismo  são mobilizadas também por militares, que muitas vezes não são afeitos à ideologista nazista e também tem de negociar e estabelecer acordos  para sobreviver, nem que este processo envolva traição e corrupção.  De algum modo a Graphic Novel mostra os dois lados do regime nazista, o que dá ainda mais realismo à narrativa.

Com o fim da guerra, “A fera judia”, como Hertzo ficou conhecido, migra para os EUA e luta boxe profissional. Lá ele enfrenta adversários lendários e até chega a lutar com Rocky Marciano. Ainda são várias as passagens que mostram as experiências traumáticas dos campos de concentração, de modo que a narrativa não perde a sua tônica.  Passamos então a entender melhor as motivações de Hertzo e o porquê de toda a sua dureza em um final surpreendente.

O fato de esta ter sido uma história real arrepia. O relato  do dia a dia nos campos de concentração sob o ponto de vista de um boxeador é algo diferente do que eu jamais tinha visto no que se refere a memórias sobre o holocausto. Tanto nos ringues como na vida, este homem realmente teve que sobreviver a todas as provações. E sua visão transparece as angústias e frustrações não apenas dos judeus, mas de todos que de alguma forma se envolveram com o nazismo, inclusive os militares. O fato de Hertzko só ter tornado sua história pública em 2009 revela que um relato sincero e sofrido como este é difícil de ser encarado, até pelas pessoas que o vivenciaram. E Reinhard Kleist transformou estas sofridas memórias em uma graphic novel complexa, tão fascinante como perturbadora.

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O Boxeador
Editora 8inverso
Título original: “Der Boxer”
Autor: Reinhard Kleist
Tradução: Augusto Paim
Preto e branco
17cm X 24cm
200 páginas
R$ 54,00

 

Resenha da HQ Turma da Mônica – Laços

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Turma da Mônica – Laços foi lançado em junho de 2013 e é o segundo título da Graphic MSP. O selo é fruto de um projeto da Maurício de Sousa Produções, que consiste em uma releitura dos personagens do estúdio em histórias no estilo Graphic Novel (romance gráfico), feitas por vários artistas brasileiros. A proposta é fazer HQs fechadas, com histórias de 80 páginas, que sejam amplamente distribuídas em bancas e livrarias. Não é à toa que Astronauta – Magnetar, a primeira Graphic MSP feita por Danilo Beyruth foi a HQ nacional mais lembrada de 2012, com três prêmios na HQMIX 2013. Laços, de Vitor e Lu Cafaggi está trilhando o mesmo caminho, sendo indicado a 5 categorias no HQMIX 2014 ( Edição Especial Nacional, Novo Talento – Desenhista – Lu Cafaggi, Publicação Infantojuvenil, Roteirista Nacional e Desenhista Nacional – Vitor Cafaggi).

Vitor e Lu Cafaggi criaram uma história original e criativa, obrigatória para quem cresceu junto ao universo da Turma da Mônica. Os traços são novos e diferentes do que podemos encontrar nos gibis, mas captam a essência dos personagens de Maurício de Sousa de maneira pura, artística e dinâmica.  A impressão que tive ao desfrutar dessa história foi a de reencontrar amigos de infância, em uma aventura deliciosa, cheia de emoção e magia.O leitor mais atento inclusive conseguirá identificar cenas de filmes infantojuvenis dos anos 80 e 90, e de HQs da própria Turma da Mônica ao longo de toda a história.

A premissa do roteiro é bem simples: Floquinho, o cão do Cebolinha, fugiu de casa e a turminha de amigos faz de tudo para encontrá-lo em uma busca que envolve muitas aventuras. A história se desenrola de forma suave e segura, em que a metáfora dos “laços” se mantém durante toda a narrativa. A enorme e sólida amizade entre a turminha e a sensibilidade de uma criança em relação ao seu animal de estimação são construídas de modo magnífico, e levam os personagens a criarem um “plano infalível” para resgatar o bichinho, em meio às estripulias já conhecidas de cada personagem.

Por isso Laços é uma boa HQ tanto para os iniciantes , que vão amar a história, como para os “veteranos” leitores de Turma da Mônica, já que brinca com vários detalhes fazem referência a gibis clássicos e a características dos personagens. Como num enigma para a resolução da narrativa, os autores trabalham com o sumiço de objetos na pelagem de Floquinho, o que dá uma coesão incrível à história.

As cores e os desenhos dos irmãos Cafaggi também são um show à parte.  A arte dos dois é belíssima e casa perfeitamente com a história. Vitor cuidou da narrativa principal, enquanto Lu cuidou das cenas de flashback, uma mais fofa do que a outra.Vale a pena também conferir os extras no final do livro, que mostram como os irmãos trabalharam os personagens até chegarem em suas formas definitivas.

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Turma da Mônica – Laços

80 páginas

Editora: Panini Comics – Edição Especial

Autores: Vitor Cafaggi e Lu Cafaggi (roteiro e desenhos)

Preço: R$19,90 (capa cartonada) e R$ 29,90 (capa dura)