Resenha da HQ Habibi

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Habibi, mais uma obra prima de Craig Thompson , pode ser considerada o trabalho mais audacioso deste autor. Esta história maravilhosa e cativante nos traz uma fábula sobre o Oriente rica e sensível, desmontada e remontada constantemente em um relicário de outras histórias. Entre pesquisas sobre o mundo árabe, Thompson levou nada menos do que sete anos para completar o livro, o que é mais do que justificado pelo enredo e arte expostos em suas belíssimas 672 páginas.

Esta premiada graphic novel conta a saga de dois escravos fugitivos, unidos e separados pelo destino, vivendo no limite que separa a tradição da descoberta.  Dodola, uma garota independente e perspicaz que é vendida como escrava aos 9 anos, torna-se com tão pouca idade responsável por um bebê que encontra no mercado de pessoas, o então pequeno Zam. Juntos eles passam a viver no deserto em um navio naufragado na areia.  Em meio a sentimentos cada vez mais conflitantes, eles passam o tempo contando histórias. Assim, somos apresentados também à origem do islamismo e de suas tradições, conforme as narrativas se combinam numa trama de aventura, romance, filosofia e tragédia.

A impossibilidade de permanecerem escondidos os força a sair de seu antro seguro, e a partir daí acompanhamos os laços de amor e carinho entre ambos serem testados pelas suas vidas, que preenche seus caminhos com rumos diferentes, doídos e muito inesperados. É a cumplicidade entre ambos  que os move a construir suas trajetórias na luta pela sobrevivência.

A jornada é ambientada em um país fictício do Oriente Médio, onde são misturados elementos distópicos e fantásticos inspirados em  histórias árabes, como o Corão e as Mil e Uma Noites. Deles é que Thompson colheu o  estilo do livro, recheado da caligrafia árabe e narrativas sagradas, que  são mescladas com maestria em um cenário fantasioso, repleto de lendas e histórias, que dão o tom de seu conteúdo histórico, mítico, religioso, filosófico e, sobretudo, humano.

Uma das marcas em suas obras são as belíssimas metáforas casando perfeitamente o seu texto com os desenhos. E aqui a influência da cultura arábica se mescla sem igual, pois os intrincados mosaicos, caligrafia oriental e os belíssimos textos fluem em uma cadência de páginas. Isso é feito sempre com uma relação bem comedida entre o racional e o intangível. Um exemplo é que  Thompson descreve, no decorrer da trama, parte da história simbólica das letras e palavras árabes entrelaçando-as de maneira bela e criativa com o próprio enredo.

De certa forma, a obra é uma reação à xenofobia americana, que se agravou pós atentado 11 de setembro, na tentativa de mostrar ao Ocidente um mundo islâmico que difere dos esteriótipos. A obra é acima de tudo sobre o amor e suas diversas formas de manifestação, sobre os sacrifícios que fazemos por ele, em contrapartida com o que existe de mais podre e cruel nos próprios seres humanos.

Ao mesmo tempo, temas delicados também não são evitados. A culpa e vergonha relativa aos próprios instintos e fantasias, e como esses sentimentos podem levar à dor, mutilação e envelhecimento. Como o sexo e a gravidez afetam não apenas como as pessoas se sentem, mas quem elas são. Temas pesados como estupro, violência e escravidão também são abordados sem comedimento.

Estas são questões que sempre estiveram presentes e que afetam toda a humanidade. Crítica social, questionamentos ecológicos, paralelos entre religião e amor: tudo encontra seu lugar nesta narrativa tão épica quanto particular e  que merece ser lida e relida.

 

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Habibi  
Avaliação enquadradinhos: ótimo
Autor:  Craig Thompson
672 páginas
Tradução: Érico Assis
Editora: Quadrinhos na Cia.
Preço: R$ 45,00

Resenha da HQ Daytripper

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Daytripper é uma graphic novel que fala sobre a vida e a morte a partir de eventos importantes que ocorrem entre as duas. Trata-se de uma história tocante que nos leva a refletir sobre esses pequenos eventos, as realizações nas nossas vidas e o que deixamos para trás quando o inevitável ocorre. Mais uma vez os gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá mostram seu potencial para contar histórias, nesta HQ  ganhadora de prêmios importantes, como o Eisner e o Jabuti.

A HQ conta a história de Brás de Oliva Domingos, milagroso filho de um mundialmente famoso escritor brasileiro que sonha em trilhar o mesmo caminho do pai. Em nosso primeiro contato com o protagonista, então com 32 anos, vemos um homem frustrado, vivendo à sombra do pai e preso em um trabalho que não o estimula nem o realiza. Ele é apenas um jornalista responsável pela coluna de obituários de um jornal da cidade de São Paulo, que escreve diariamente sobre a morte de outros, sem nunca começar a sua própria vida.

A partir daí, cada um dos dez capítulos mostra um período da vida de Brás de modo não linear: ora o vemos com 21 anos, encontrando aquela que parece ser a mulher da sua vida numa aventura cheia de misticismo passada na Bahia; ou com 41, vivendo a emoção do nascimento do primeiro filho ao mesmo tempo que tem de enfrentar a perda do pai; se emocionando com a sensação arrebatadora do primeiro beijo aos 11 anos; ou aos 38, quando busca incessantemente seu amigo Jorge, desaparecido há anos; e vivendo o sucesso como escritor aos 47 anos em uma turnê de divulgação pelo país.

Nesse movimento de idas e voltas, as vidas que ele teve/poderia ter/terá vão se revelando diante de nossos olhos. Através desses pequenos vislumbres, nós montamos aos poucos o quebra-cabeça da existência de Brás: vamos conhecendo-o melhor por meio das suas amizades, namoros, sonhos, casamento e do seu relacionamento com seu pai. Os capítulos sempre terminam com a inevitável morte do personagem, mas nos dizem muito sobre os pequenos instantes pelos quais sua vida se constitui.

Os desenhos magistrais da dupla Bá & Moon ganham uma nova dimensão nessa história. Ela  é contada com um lirismo tênue, interpolada por cenas amargas e cruas, que a fazem oscilar delicadamente entre o real e o mágico, sem que fique claro, jamais, em qual dos dois a trama verdadeiramente se passa.

Apesar de ter o nome da música dos Beatles e de ter saído primeiro no exterior e só depois traduzida para o português, Daytripper se passa no Brasil, seus personagens são brasileiros e o nome do protagonista é uma clara referência a um dos mais clássicos personagens de Machado de Assis. A adaptação traz um Brás Cubas da vida urbana e pós-moderna, mas que também tem de lidar com as mesmas dúvidas e incertezas inescapáveis à existência humana já trabalhadas na obra de  Machado de Assis. As mortes de Brás de Oliva Domingos nos fazem aprender mais sobre a vida e o quão efêmera ela pode ser.

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 Daytripper

Avaliação enquadradinhos: bom

Autores: Fábio Moon e Gabriel Bá (roteiro e arte)

Editora: Vertigo

Preço: R$ 45,00 (capa mole) e R$ 55,00 (capa dura)

250 páginas

Resenha da HQ Três dedos – Um escândalo animado

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Três Dedos – Um Escândalo Animado é uma graphic novel escrita e ilustrada por Rich Koslowski. A paródia a personagens famosos dos desenhos animados e ao aparente ilimitado império dos estúdios Disney e Warner Bros é trabalhado de maneira envolvente, cômica mas não menos ácida, nesta HQ vencedora do prêmio Ignatz Award de 2003.

A obra mostra a trajetória do cinema de animação em um mundo onde os humanos dividem espaço com os animados, seres antropomórficos considerados cidadãos de segunda categoria, que vivem em guetos e são desprezados pela sociedade. Nesse contexto o jovem cineasta Dizzy Walters descobre o talentoso Rickey Rat, um ator animado que, inusitadamente,  se torna uma grande estrela.

A parceria entre Ricky e Dizzy conquista Hollywood e se mantém hegemônica no cinema de animação, até que rumores sobre um escândalo terrível ameaça seu império. Em entrevistas exclusivas com figuras importantes do universo animado,   tais como o coelho Pernalouca, o leitão Engasguinho, o passarinho Liu-Liu, Leon Rey e o Pato Nildo,  o leitor é conduzido a desvendar o mistério que envolve o monopólio de Rickey nos cinemas, e de que maneira isso determinaria o destino de muitos outros personagens animados.

O roteiro é muito bem estruturado, revelando seus segredos de forma cadenciada. A narrativa se desmembra em forma de uma reportagem – documentário, o que agiliza a leitura e envolve o leitor. É por meio de fotos e depoimentos que procura-se compreender a possível ligação entre as figuras centrais da indústria cinematográfica e  a predominância de personagens com três dedos nas animações, e ainda se isso teria relação com a especulação de um determinado “ritual” ao qual todos os atores animados aspirantes deveriam se submeter.

A paródia dos personagens é muito bem feita, e por isso merece ser destacada. Os diálogos são pontuados por gírias e sotaques, além de balões e letreiramentos característicos. Não faltam referências e brincadeiras com os personagens clássicos de desenhos animados da Disney e da Warner, que se cruzam com  figuras históricas tais como  Kennedy, Martin Luther King Jr. e Marilyn Monroe.

Um misto de conspiração política e  jornalismo sensacionalista dá a sensação de presenciarmos uma história que certamente não está gibi, nem nos cinemas, nem no mundo real, mas, ao mesmo tempo, está. Humor negro e crítica social estão inscritas na injustiça, mutilação e ruína de tantas vidas que passaram pela indústria do entreterimento. Certamente você nunca mais verá  personagens de desenhos da mesma forma.

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Três dedos: Um escândalo animado
Roteiro e Arte: Rich Kowslowski

Tradução: Eliane Gallucci e Maurício Muniz

Formato: 21 x 26 cm

144 páginas em preto e branco

Gal Editora

Preço: R$ 39,90